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ENTENDA - Inovações registrárias: necessidade ou não de obtenção de certidões dos vendedores nas aquisições de imóveis



A burocracia sempre foi salientada na história brasileira, tanto em razão da rigidez normativa, quanto pela complexibilidade dos atos administrativos, fiscalizações, procedimentos e processos da Administração Pública ou, até mesmo, pela falta de eficiência e presteza no funcionamento dos setores públicos.

Com o passar do tempo, os legisladores idealizaram e proporcionaram avanços - mesmo que singelos - ao sistema de desburocratização no Brasil.

Dentre essas melhorias, em 27 de dezembro de 2021, foi editada a MP 1.085, intitulada como MP de Registros Públicos, que promoveu uma modernização no sistema registral, desburocratizando serviços registrais, com consequente redução de custos e de prazos e maior facilidade para a consulta de informações e envio de documentação por meio eletrônico.

A MP foi convertida na lei 14.382/22 e, de forma inovadora, alterou os incisos e parágrafos do artigo 54, da lei 13.097/15, possibilitando ao comprador uma maior segurança ao adquirir um imóvel, visto que este terá, em tese, a sua boa-fé presumida na aquisição.

Em verdade, o parágrafo primeiro1 do artigo 54, da lei 13.097/15, incluído pela lei 14.382/22, encontra-se em consonância com a Súmula 3752 do e. STJ, tendo em vista que, quaisquer situações e/ou fatos que eventualmente maculem o negócio jurídico, deverão estar registrados na matrícula do imóvel.

Ademais, o parágrafo segundo3 da referida lei, "desobrigou" o comprador de apresentar e/ou arquivar as certidões fiscais, forenses ou de distribuidores judiciais em nome do vendedor, garantindo assim, a validade e eficácia do negócio jurídico apenas com a obtenção da certidão de matrícula - que demonstrará eventual registro de hipoteca, alienação fiduciária ou penhora, por exemplo - e da comprovação de regularidade do IPTU, recolhimento do ITBI no caso de compra do imóvel ou, ainda, para doações, do ITCMD.

Apesar da inovação trazida pela legislação, que busca uma maior desburocratização registral, questiona-se - ante os costumes brasileiros - se realmente haverá segurança jurídica ou, até mesmo, viabilidade prática por parte dos compradores.

Como é sabido, o Direito brasileiro adotou em seu ordenamento, o sistema de registro de direitos, cuja principal função não é somente a de dar publicidade aos instrumentos e/ou contratos privados, mas sim, desempenhar uma forte qualificação registral da situação jurídica a ser publicizada, buscando - sempre que possível - que o registro exprima a realidade do negócio jurídico (BRANDELLI, 2016, p. 41-42).

A título comparativo, no sistema registral francês, o mero negócio obrigacional já é suficiente para a transferência de propriedade. O registro no cartório competente não é um fator decisivo para a constituição do direito real, mas tão somente se presta a dar publicidade do negócio jurídico perante terceiros (BEVILÁQUA, 1958, p. 52-53).

Nesta perspectiva, os negócios jurídicos e o próprio Direito não podem ser considerados como uma loteria, razão pela qual, o comprador precisa de meios juridicamente seguros para realizar a aquisição de um imóvel de uma forma mais eficaz e sem contratempos (MATTOS E SILVA, 1999, p.131).

Dessa forma, a interpretação dos Tribunais acerca das alterações elencadas nos parágrafos anteriores será essencial para avaliar os efeitos práticos da alteração legislativa em relação ao comprador.

Em consonância com o disposto acima, o STJ, por exemplo, em 2009, já havia se posicionado sobre o assunto no REsp 1.015.459, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, afirmando que o comprador, com base no comportamento do homem médio, zeloso e diligente no trato dos seus negócios jurídicos, bem como a praxe na celebração de contratos de compra e venda de imóveis, deve realizar uma pesquisa prévia das comarcas de localização do bem e de residência do alienante, no mínimo.

Sob outra perspectiva, o jurista José Eli Salamacha (2005, p.178) aponta que a doutrina e a jurisprudência protegem o terceiro de boa-fé, desde que este seja diligente. Ser diligente, em seu entendimento, é tomar todas as medidas cabíveis para assegurar a celebração de um bom negócio.

Porém, ainda que o adquirente tome todas as cautelas e precauções necessárias e que estejam ao seu alcance, verificamos que este ainda poderá ser surpreendido com a distribuição de uma ação pauliana em seu desfavor, ou um pedido de reconhecimento de fraude à execução, questionando a validade e eficácia da aquisição feita.

Dessa forma, é importante compreender que a tradição brasileira no ramo das operações imobiliárias consagrou, até o momento, a necessidade de o adquirente tomar uma série de cautelas, a fim de se desincumbir do dever de diligência, podendo, assim, ser considerado adquirente de boa-fé. A jurisprudência tem sofrido alterações, sobretudo em razão da Súmula 375 do STJ, que inaugurou uma nova ótica a respeito do tema. No entanto, a prudência recomenda entender de que essas mudanças de cultura ocorrem lentamente e demoram a se sedimentar.

Assim como a mencionada Súmula do STJ provocou mudanças de entendimentos nas decisões dos Tribunais é de se esperar que a nova legislação seja interpretada pela jurisprudência, paulatinamente.

As alterações trazidas pela lei 14.382/22, até o presente momento, não foram analisadas de forma massiva pelos Tribunais de Justiça a ponto de haver uma jurisprudência consolidada.

Considerando o pouco que se tem até o momento, a respeito de entendimentos pretorianos acerca da lei em tela, destaca-se o acórdão do desembargador relator César Peixoto, da 9ª câmara de Direito Privado do TJ/SP, que negou provimento ao Agravo de Instrumento 2141172-27.2022.8.26.000, interposto pelo credor. O pedido de reconhecimento de fraude à execução do imóvel alienado pelo devedor ao terceiro adquirente não foi acolhido pelo Tribunal, por conta da inexistência de gravames na matrícula do imóvel alienado, além da falta de demonstração de má-fé do adquirente nos termos do artigo 792, e incisos I, II e III, do CPC e do artigo 54, II, § 1º e § 2º, da lei 13.097/15.

Outro acórdão, de lavra do desembargador relator Ruy Coppola, da 32ª câmara de Direito Privado do TJ/SP, negou provimento ao agravo de instrumento 2168025-73.2022.8.26.0000, também interposto por credor que alegava fraude à execução, por conta da venda de dois imóveis pelo devedor, quando já havia Cumprimento de Sentença em curso. O recurso em comento foi desprovido, pois não havia a averbação da execução na matrícula dos imóveis, tampouco prova de má-fé do terceiro adquirente.

Assim, embora as alterações da lei 14.382/22 objetivem trazer maior segurança jurídica aos compradores de imóveis, sobretudo ao dispensá-los de apresentar certidões forenses ou de distribuidores judiciais, é fato que a aplicação da lei dependerá da interpretação dada pelos Tribunais pátrios acerca de tais dispositivos, o que, como dito, não ocorrerá tão rapidamente. Enquanto a mudança na jurisprudência não se consolida inteiramente, é recomendável que os adquirentes de imóveis continuem tomando cautelas no ato da compra, consistentes na obtenção e arquivamento de certidões, bem como na realização de pesquisas forenses, mesmo sabendo que, possivelmente, essas providências possam vir a ser consideradas excesso de zelo, no futuro.

O fato é que, mesmo antes da cristalização de uma nova jurisprudência a respeito da questão, as inovações trazidas pela lei 14.382/22 são válidas e devem guiar, com temperança, a interpretação dos operadores do Direito, tanto nas hipóteses em que se estiver diante de uma compra e venda de imóvel em curso, quanto nos casos em que se atuar em nome de credores ou exequentes na busca por bens penhoráveis.

Fonte: Migalhas

 
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